"Um
dia desses, peguei meus medos e histórias; minhas culpas e memórias,
espalhadas todas no velho chão de minha casa. Um dia, descolei
hipocrisias e invejas, raivas e egoísmos, perdas e ocas vitórias, todas
presas nos cantos e frestas do meu coração enferrujado. Um dia juntei
minhas intrigas e novelas, meus desdéns e desatinos e joguei todos na
fogueira que fiz no quintal-de-mim. Um dia, recolhi
minhas
vergonhas e receios, crises e aflições, ciúmes e tristezas, todas elas
amarrotadas atrás dos meus (in)cômodos antigos. Quebrei minhas correntes
como quem desamarra laços de um presente esquecido. Um dia separei joio
do trigo, vícios de virtudes e me livrei das traças de emoções baratas a
corroer minha sanidade e devorar minhas doçuras. Troquei meus falsos
tesouros, gaiolas vazias e velhas crenças por espaços livres entre os
suspiros. Arranquei pela raiz minhas mágoas e ressentimentos no jardim
de aflições que a contragosto cultivei. Lavei meus sonhos e planos com
bastante água e sabão. Passei um pano nas lembranças a me dar gastura e a
me prender no passado doído. Doei carapuça que me servia pra brechó do
nunca. Esvaziei os porões da consciência de tralhas e traumas, desculpas
e truques. Troquei as velhas fechaduras da solidão e abri as janelas
para a leveza irradiada. E assim, mudei a folha do calendário do meu ano
velho; a decorar quarto de hóspedes para o Amor descansar sereno. Um
dia, fiz faxina aqui dentro e tudo ficou mais bonito lá fora."
Guilherme Antunes
Guilherme Antunes
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